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segunda-feira, 17 de maio de 2010

Da mentira como método


 Vão dizer que é implicância de minha parte, que estou exagerando. Mas vamos lá. A “Carta ao leitor” da Veja desta semana, intitulada “A riqueza sem culpa” (acima), começa com uma afirmação: “ ‘É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus’, escreveu o evangelista Marcos”.

Na imagem que ilustra o editorial, um retrato sacro de São Marcos (o evangelista, não o goleiro), com os seguintes dizeres: “São Marcos, evangelista, e a condenação dos ricos: na estagnação, enriquecer é pecado; no crescimento, é virtude”.

Ora, a famosa advertência (“é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”) não é de São Marcos. Trata-se, sabemos todos, de uma reflexão cujo autor é Jesus Cristo e que foi registrada por Marcos no seu evangelho (10:25). Um leitor que desconhecesse completamente que o livro de Marcos é um registro da vida e dos sermões de Jesus, e que não soubesse que a frase foi também registrada pelos evangelistas Mateus (19:24) e Lucas (18:24), naturalmente suporia que sua autoria é de Marcos, e não do Cristo. Atribuir a assertiva a Marcos seria como se eu tivesse escrito, digamos, uma biografia de Vinícius de Moraes, e mais tarde a Veja publicasse: “Leonardo escreveu: as feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”.

Sim, claro, Leonardo não é São Marcos, nem Vinícius é Jesus Cristo, mas o meu ponto é o seguinte: se a Veja não é exata nem quando cita Jesus Cristo, como esperar que o seja quando faz referência a um simples mortal? Se a Veja não prima pelo rigor nem quando menciona um texto acessível como o Evangelho, como é que podemos confiar quando cita artigos acadêmicos de antropologia?

Se, no editorial desta semana, a revista atribui a Marcos uma frase que não é dele, na reportagem “A farra da antropologia oportunista”, Veja fez exatamente o mesmo, mas com Eduardo Viveiros de Castro: atribui-lhe uma declaração, colocando-a entre aspas, como se a mesma tivesse sido afirmada diretamente aos repórteres da Abril:

“Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original”, diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.
Eduardo Viveiros de Castro é um dos maiores antropólogos brasileiros (senão o maior). Goza de enorme prestígio internacional: lecionou em renomadas universidades estrangeiras, foi diretor de pesquisas no CNRS (Conseil National de la Recherche Scientifique) e presta consulta ao magnífico museu parisiense de artes primitivas, no Quai Branly.

Viveiros de Castro não deu entrevista aos jornalistas da Veja, nem jamais escreveu coisa semelhante ao publicado na revista, como reiterou em carta enviada à Abril e divulgada amplamente na internet (aqui, via NPTO):

A matéria de Veja cita, entre aspas, duas frases que formam um argumento único, o qual jamais foi enunciado por mim. Cito, para memória, a atribuição imaginária: “Não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente cultural original”. Com isso, a revista induz maliciosamente o leitor a pensar que (1) a declaração foi dada de viva voz aos repórteres; (2) ela reproduz literalmente algo que disse. Duas grosseiras inverdades.

A Veja sequer publicou a contestação do antropólogo na seção de cartas dos leitores. Não pediu desculpas. Não reparou o erro. Não o fez porque, além de não querer, ela não consegue.

Não consegue porque dentro da Veja não há ninguém – ninguém – capaz de manter um debate sério sobre antropologia com Viveiros de Castro.

Não consegue porque a mentira é um método dessa publicação. Porque o diálogo é raso e, se alguém contesta o que publicam, logo aparece o Tio Rei para chamar de petralha e para acusar o interlocutor de delinqüência moral – é o que lhes sobra fazer: se não podem refutar o argumento, denigrem o argumentador.

O crime que a Veja cometeu não é discordar das posições antropológicas de Viveiros de Castro. É algo muito mais sério do que isso: é afirmar que ele disse uma coisa que ele jamais disse. Isso é mentira. Qualquer um pode discordar das teses de Viveiros de Castro, mas deturpar seu argumento é desonestidade intelectual da pior espécie.

O que está em discussão não é a visão que a revista tem das questões agrária e indigenista. É evidente que há muitos abusos na distribuição de terras a indígenas. Tampouco me simpatizo com as ações do MST, nem satanizo o agronegócio. Mas a Veja tem a obrigação de defender sua posição com dados consistentes, não com afirmações distorcidas. E não deveria usar o menosprezo nervosinho (típico do Tio Rei) como método de diálogo com quem dela discorda, como se fosse detentora de uma verdade inquestionável.

Na França, há três grandes jornais: o Libération (esquerda), o Monde (centro-esquerda) e o Figaro (direita). Em questões sensíveis (como a imigração), esses jornais são absolutamente discordantes. Mas a divergência se dá em argumentos, não em desonestidade; não se troca o justificar pelo rotular o interlocutor com etiquetas cheias de desprezo boçal. Um leitor do Figaro não diz que os jornalistas do Libé são analfabetos e delinqüentes morais, nem o assinante do Monde esperneia dizendo que o Figaro publica mentiras: os leitores discordam veementemente da perspectiva político-econômica, mas não colocam em xeque a idoneidade editorial do jornal de que discordam. É isso que enriquece o debate político-cultural. Isso é democracia. A Veja não está preparada, nem contribui, para esse tipo de jornalismo. Um cara como Reinaldo Azevedo só sobrevive em um ambiente em que não há uma revista semanal que tenha força editorial para fazer contraponto ideológico à Veja. Apenas em um país em que o debate político é rasteiro um livro como O país dos petralhas pode ser best-seller. Fosse na França, ou nos EUA, o melhor trabalho que restaria ao Tio Rei seria redigir o folhetinho da paróquia que ele freqüenta.

O NPTO lançou um repto: “Nenhum acadêmico brasileiro, de nenhuma área, tem direito de dar entrevista para a Veja, ou colaborar com a revista de que forma seja, enquanto não houver um pedido de desculpas a Eduardo Viveiros de Castro”. NPTO tem razão. Que haja adesão imediata e irrestrita. Pena que a Regininha Poltergeist, em entrevista à Veja desta semana, tenha furado o pacto. Mas convenhamos: para o nível jornalístico da revista, uma intelectual do porte da Regininha está mais do que apropriado.

 Leonardo de Souza é médico formado pela UFMG. Especialista em Neurologia, trabalha desde 2005 no Centro de Doenças Cognitivo-Comportamentais do Hospital da Pitié-Salpétriêre, em Paris. É doutorando em neurociências na Université Paris

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